Império da Mentira


H ouve um episódio que me deu alguma satisfação pela sua flagrante ingenuidade, diz-me um indivíduo muito convicto que estava blindado das contrariedades da vida porque sabia umas verdades. Uns podres, diz ele. Olhei para ele e fiquei intrigado pelo peso e impacto dessas verdades, e o rapaz - digamos assim, não pela idade, mais pela imaturidade - diz-me: há gente muito poderosa com uns podres, se eu abrir a boca, há gente que vai para a choça.

Não expressei qualquer manifestação de curiosidade, como é costume: partilha comigo esses segredos porque também quero robustecer o meu arsenal. Não, sorri. Sorri candidamente. O meu colega não entende que o sistema não funciona assim, o nosso regime não se preocupa com a verdade. E eu sei isso porque já vi casos mais do que suficientes dessa realidade.

Claro que há pessoas com medo da verdade, há verdades humilhantes e degradantes. Mas não é preciso a verdade para destruir a reputação de uma pessoa, homem ou mulher. Não é preciso a verdade para destruir laços de amizade. Não é preciso a verdade para destruir carreiras. Não é preciso a verdade para macular uma vida. Longe disso, a verdade não conta para nada. É por isso que julgo o meu colega muito ingénuo. Se quiserem destruir a vida dele, a verdade não importa. Eis a realidade.

A verdade até incomoda a crueldade. Se não houver uma verdade para intimidar um homem ou uma mulher, inventa-se umas mentiras com a maior tranquilidade. E há toda uma rede de rumores que transformam essa mentira numa verdade insofismável. Aliás, há pessoas que sentem prazer em validar rumores. Há pessoas que dão a chancela à mentira com prazer. Conheço um caso de uma pessoa que não tem qualquer problema em atestar que um rumor é verdadeiro, por mais atroz e cruel que seja. Daí julgar este homem um ingénuo. Ele não entende o grande problema do Império da Mentira. A mentira é a grande arma dos poderosos. E é uma arma que é usada com a cumplicidade de muitos. E é preciso dizer isto, o povo - eu incluído - somos cúmplices deste império. E vejamos como cheguei a esta conclusão. 

Conta-me um amigo a história da sua queda. É uma história simples e até comum, uma sevícia de um desaguisado pessoal. Já repararam que há pessoas que alimentam a rivalidade entre indivíduos? E há pessoas que se deixam manipular por essa instigação tóxica. Mas adiante, o meu amigo conta-me a história da sua desgraça. E eu não senti empatia. Ou melhor, senti. Mas apenas depois de refletir. A minha primeira reação foi de satisfação. Pensei com alegria: mais um que tem cravado na carne as farpas da ignomínia. Sim, a minha primeira reação foi de satisfação. Não foi prazer com a desgraça alheia. Não foi isso, foi mais um alívio. Este meu amigo agora já não é cúmplice da crueldade humana.

Mas depois pensei: quantos e quantos têm as farpas da ignomínia na carne e isso acabou por intoxicar o seu sangue. Costumam dizer-me que o sofrimento torna-nos mais humanos. Mas o toque do mal pode ter o efeito oposto. O toque do mal pode-nos tornar ainda mais cruéis, egoístas e selvagens. Há muitos casos assim. Um indivíduo que fica privado de dignidade, pode reagir contra a injustiça, mas também pode integrar a injustiça no seu espírito. Pode tornar-se cúmplice da crueldade, pode querer sacudir o estigma do sofrimento tornando-se por sua vez mais num opressor. Não há nada mais mesquinho do que um homem que perdeu a dignidade, e pior, desiste da dignidade. E há muitos casos assim, estes indivíduos são azedos e mesquinhos. A sua única satisfação é adquirir os mesmos traços daqueles que lhe fizeram mal. Daí que, depois de uma breve reflexão, senti que a minha satisfação e alívio não faziam sentido. Eu próprio fui corrupto neste episódio. Eu deixei-me dominar pelo império das mentiras. 

O império das mentiras transforma tudo numa representação. A começar pelos atributos positivos. A honra é coisa de tolos. A honestidade é uma arma de fracos. A sinceridade é uma arma. O dever é uma coisa estúpida. A verdade incomoda. A razão disto é o poder e as relações de poder. Há um feudalismo na região. Há as elites. E depois há o povo, também conhecido como “gado”. E tudo isto é uma mentira. As famílias não são importantes, e o povo, naturalmente, não é gado. 

A razão desta inversão de valores é o domínio e controlo social. Se vivêssemos numa sociedade decente, a mobilidade social é um assunto banal. Mas o poder detesta a mobilidade social. É impossível concorrer contra a mobilidade social. O meio é pequeno e os recursos são limitados. Com verdadeira mobilidade social, muitas famílias perderiam o seu estatuto numa questão de uma ou duas gerações. E isso não pode acontecer para essas famílias. Portanto, é preciso minar e envenenar todos aqueles que podem desafiar o statu quo. É preciso arrasar qualquer veleidade de mobilidade social antes que o indivíduo tenha sequer consciência que isso é possível. E há imensa gente que tem fraca noção do feudalismo social na região. Ou se têm noção, é porque foram arrasados. Nada disto é saudável, como é natural. Isto cria muito ressentimento na sociedade. O conceito marxista de luta de classes é real na região, e não sejamos ingênuos. Existe ressentimento de quem está na base, como há ressentimento em quem frequenta o topo. A luta de classes é uma guerra sem quartel.

Conheço pessoas que têm um medo escatológico de perder o seu estatuto social. O medo entranhou-se na sociedade. E o medo destrói as relações sociais, familiares e de amizade. O medo é o catalisador do império das mentiras. Temos muito medo. E ficamos cegos com ele. Neste império, onde não há verdade, não há lenda e não há grandeza, somos todos cúmplices de uma mentira medonha que nos desumaniza. E torna a região numa ilha maldita. 

Enviado por Denúncia Anónima.
Sexta-feira, 29 de Abril de 2022
Todos os elementos enviados pelo autor.

Adere à nossa Página do Facebook (onde cai as publicações do site)
Adere ao nosso grupo do Facebook: Ocorrências CM
Segue o site do Correio da Madeira