O endeusamento de banalidades


 

N o início do mês, quando se viu uma acção louvável da Ordem dos Arquitectos, criticando a remodelação de um hotel, desde logo e pelas redes sociais surgiram as tropas de "haters" a atacá-los. Não se pode exigir qualidade e rigor nesta terra. Tudo passa pela falta de cultura de muitos para alcançarem o que se diz em benefício das respectivas áreas em vez de se ver só política.

A Ordem insurgiu-se com desrespeito pela a obra de Raúl Chorão Ramalho (no hotel Quinta do Sol), destacado elemento de uma geração de arquitectos modernistas portugueses. Temos 3 problemas, quem faz o projecto toma conhecimento do historial do prédio? O proprietário não pergunta para proteger o seu investimento? E se acaso depois quer vender e o prédio desvaloriza com a sua intervenção? E quem avalia na câmara tem condições para fazê-lo? Como é que ninguém fala para alertar? A razão é sempre a ignorância, pelos vistos colectiva. Temos pedreiros a facturar, não gente de brio. Assim continuamos na progressiva eliminação do património arquitectónico. há muitos empresários com dinheiro e do regime que viabilizam o que querem mas falta-lhes cultura, o dinheiro só traz respeito a outros da mesma índole. E fica o aviso:

apelando a que sejam tomadas medidas de maior protecção do património edificado e cuja qualidade arquitectónica tem o devido merecimento mas não se encontra ainda classificado nem como Imóvel de Interesse Público nem como Imóvel de Interesse Municipal. Ordem dos Arquitectos.

Outro episódio aconteceu recentemente. Nota-se quando arquitectos são do sistema, andam ao colinho. Albuquerque sem nada para fazer, decide-se por visita a uma ponte perfeitamente comum mas a qual se deve tributo da máfia no bom sentido, para embelezar a pouca vergonha que fizeram no leito da ribeira. E lá está o autor das iluminações insonsas de outros tempos que, depois da opinião pública se bater na praça, lá conseguiu arrancar um pouco de inovação e arte do GR para as iluminações de Natal.

Sobre a ponte vou copiar uma publicação de Danilo Matos, outra pessoa digna que não faz fretes nem embarca em coros:

Prefira sempre a visualização do original (link)

"A COROA QUE FALTAVA

1.Vamos primeiro à COROA. Uma ponte pedonal, a meu ver pindérica, pretensamente original, está a ser montada na Ribeira de Santa Luzia, no troço da ribeira entre as pontes do Bettencourt e D. Manuel cujas obras, passados 11 anos, foram finalmente executadas e concluídas, numa terceira versão que foi escolhida e que eu denunciei e vou recordar mais à frente, dadas as agressões patrimoniais, ambientais e estéticas que foram praticadas e que convém recordar e contestar.

2. Disseram-me que era uma passadeira metálica, projectada pelo ‘arquitecto da Casa das Mudas’, para unir as duas margens da Ribeira de Santa Luzia. Pensei logo, Paulo David enganou-se no lugar, o “Lugar” de que tanto fala nas suas palestras como elemento marcante e determinante nas opções suas e de muitos arquitectos. Não é possível. Garantiram-me que sim e eu fui lá ver. Já fizeram tantas javardices e crimes que eu já não choro. Mas este foi contido, e este é um dos textos mais tristes e também mais raivoso que escrevo sobre a minha cidade. Como é possível tanta vaidade embrulhada em burrice!?

3. Esta ideia peregrina de uma passagem pedonal naquele sítio eu já conhecia e dei a minha opinião, que me pediram, e chegou a ser abandonada. Subia-se uma rampa de acesso do lado da 5 de Outubro, com 8% de inclinação que ocupava metade da rua, duas vigas de betão pré fabricado ligavam as duas margens.  Eu chamei-lhe na altura, quando me permitiram ver os projectos, de ponte pindérica. Em conversas que tive com gente responsável sugeri, na brincadeira, que podia ser aproveitada para a Serra De Água, dava jeito, ali não. Pelos vistos houve outros interesses, insistiram e chamaram Paulo David para fazer o frete pretensamente modernista que está à vista. Não há outro termo: frete, porque um arquitecto com o curriculum de Paulo David não pode branquear os crimes patrimoniais e culturais onde a passadeira ia ser construída, isso não vale. Não é só o Lugar, que é preciso respeitar quando se projecta, estamos a falar de um lugar com muita história, que emprestou à cidade uma Alma própria que não pode ser, como foi, apunhalada com uma pretensa modernidade de meter ao bolso.

4. Aquela passadeira não está muito longe da outra a que chamei de pindérica mesmo que fosse coberta a ouro em vez de cobre, mas é mais grave, porque não cumpre as normas mais elementares de segurança. Segurança que começa a ser violada exactamente pelo dono da obra, o Governo Regional. Recordo que se baixou o leito da ribeira para uma cota média das águas do mar com uma laje de betão armado, com problemas salinidade previsíveis; que se betonou muralhas classificadas como património; tudo em nome do caudal e da secção de vazão que tinha de ser cumprido.

Aqui, é o governo que manda apoiar uma ponte metálica directamente nas muralhas das duas margens ao nível dos pavimentos. Na margem direita, reduz a altura de vazão precisamente no local onde historicamente, outubro de1993 e 20 fevereiro de 2010, as águas galgaram e romperam os muros de guarda e criaram um ‘rio’ violento que desceu a rua dos Tanoeiros, espalhou-se pela rua da Alfandega até a marginal.

5. Depois a passadeira não é para todos, não cumpre as normas europeias das cidades no que respeita aos cidadãos com mobilidade condicionada ou reduzida, que representam, segundo estatísticas inscritas na Convenção de Nova Iorque da ONU, 36,5% dos cidadãos que usam ou vivem nas cidades.

6. Vejamos o argumento utilizado pelos defensores da passadeira - o Governo Regional e pelos vistos também a Câmara Municipal. Os comerciantes querem! Vai em anexo  uma foto muito clara: uma vez chegados à 31 de Janeiro, o acesso à rua Direita faz-se atravessando a rua 31 de janeiro sem passeio e descendo por uma escadinha de dois lanços em ziguezague, com 15 degraus e 2,0 metros de largura. Mas para aceder da 5 de Outubro passa-se por cinco degraus. A passadeira da vergonha não é para todos.

Preocupam-se com a rua Direita, mas mais grave é o que o Governo Regional mantém no Largo do Pelourinho, com obras há cerca de 8 anos e ninguém se atreve a andar por ali. Aliás, ainda há poucos dias, estavam a ser aplicados herbicidas, um material proibido, por trabalhadores do governo para queimar o pasto de erva que lá existe.

7. Uma pergunta muito directa: quem pagou a “passadeira” e o que acrescenta este investimento à segurança da cidade? É uma pergunta que vai ser colocada à respectiva Comissária. O dinheiro aqui esbanjado nesta brincadeira dava para corrigir algumas linhas de água que aguardam há anos e que Câmara muito tem reclamado.

8. Ou será que este modelo de passadeira cobreada, numa manifestação de novo riquismo que o governo encomendou, tem a ver com o Hotel que o grupo AFA vai construir no Largo do Pelourinho, no edifício da Insular? Dava jeito, senhor Avelino, sobretudo para um postal de propaganda. A passadeira deve ser fechada pela Câmara, ou melhor, nem deve abrir porque não cumpre as normas de segurança nem as directivas europeias sobre a mobilidade pedonal em espaço urbano. Mas também porque é uma ofensa à fome contida neste natal por muitos dos nossos concidadãos.

9. NOTA PRIMEIRA.

Estes 191 metros da ribeira que foram agora entaipados constituíam uma das imagens mais singulares, únicas e incríveis do Funchal e daquelas que mais correram o mundo. Porque do ‘miradouro’ da ponte do Bettencourt se pode ver o mar, a serra, as fortificações como Oudinot chamava às suas muralhas, a presença da água dentro da cidade e as gentes que se cruzam naquele pequeno espaço – ali sente-se: é a CIDADE. A minha raiva é maior porque com a minha formação técnica e cultural, procurei demonstrar que aquilo tudo estava errado. Os pressupostos técnicos utilizados pelos projectistas no tipo de soluções destruidoras que preconizaram não foram devidamente avaliados, havia outros mais naturais e duradoiros. Isso, repito mais uma vez, defendi eu num debate organizado na Ordem com a presença de 80 colegas, que podem testemunhar, e do chefe destes projectos o engenheiro Jorge Cruz, que não teve coragem de contestar. Nessa altura, outros técnicos deveriam consultados ou, no mínimo, recolher os pareceres que a Lei recomenda em obras desta envergadura e perigosidade. Mas os milhões postos em cima das mesas não deixaram, foi um fartar vilanagem…

E continuamos com a cabeça debaixo da areia. A intervenção de Paulo David vem branquear, quer ele queira quer não, os crimes cometidos que dali se visionam ao longo daquela que era a nossa joia da coroa - a ribeira de Santa Luzia. Passarei a chamar-lhe a passadeira da vergonha, indigna de quem projectou a casa das Mudas, mas esta, a passadeira, pode sair em qualquer altura, o uso assim vai decidir e os pombos vão ajudar; é uma passadeira que está de passagem, não veio para ficar. Não precisa de ser bombardeada, a não ser verbalmente. O resto fica; o resto, o que vai continuar a ver-se da ponte, os crimes patrimoniais e culturais à vista de todos ficam para contar no futuro às novas gerações que os vândalos da cultura passaram por aqui. Que LUGAR ESTRANHO, pensarão alguns dos nossos visitantes. Foi o que eu pensei quando hoje lá fui para escrever esta dorida crónica.

10. NOTA SEGUNDA

A minha ideia utópica, lançada em 2016, que Paulo Cafôfo conhecia e Paulo David também, porque chegou a fazer parte do programa do Gabinete da Cidade, de criar ali, entre as duas pontes o “Passeio Oudinot”, com um Memorial às vítimas das aluviões, e outros pormenores que já não interessam para aqui, passou. Aquele era o LUGAR. As utopias podem ser ignoradas ou adiadas, mas não podem ser enterradas. Voltam sempre. Fica para memória futura, isto que pouca gente sabia.

O que ainda resta da herança de Oudinot está na ribeira de João Gomes, entre as pontes do Mercado e do Campo da Barca. O bairro de Santa Maria que foi o bairro mártir da aluvião de 09 de Outubro de 1803, com cerca de 600 mortos, está ali ao lado. Foi a primeira visita que fez quando cá desembarcou e a que deu mais atenção e urgência aos trabalhos, mobilizou grande parte das suas tropas e começou a erguer as suas fortalezas com pedra e cal para enfrentar o primeiro inverno pós desastre. Chegou à Madeira a 19 de Fevereiro de 1804, morreu no seu posto a 11 de Fevereiro de 1807, faz em breve 214 anos. Foram 3 anos decisivos na defesa da cidade e das suas gentes. Ele será para mim, de todas as personalidades que por cá passaram, aquela a quem mais devemos…Não vamos deixar que a ambição de uns e a vaidade de outros impeçam de cumprirmos a nossa dívida histórica.

A Câmara Municipal do Funchal é a fiel depositária do que resta da herança Reinaldo Oudinot. Tem uma candidatura do Funchal a Capital Europeia da Cultura. Tem aqui a oportunidade de fazer o que ainda não foi feito. Assuma, de uma vez por todas, que a cidade tem um governo.

Um bom Natal para os meus amigos especialmente os que tiveram a paciência de me ler até aqui.

Danilo Matos.
Funchal, 22 de Dezembro 2020."



Finalizo dando boas Festas ao Correio da Madeira e seus leitores, desejando que se mantenham firmes a dar espaço ao que vejo em slogan no Facebook, "sede do contraditório", única maneira de quebrar a estupidez e mediocridade reinante.

Por último, deixo um filme animado de 1976, "The Irony of Fate", uma sátira onde um bom arquitecto projecta um belo edifício e vê a sua criatividade abalroada por burocratas e interesses, na hora de construir, o projecto não passa de um bloco de apartamentos genérico. Aí decide dar o que todos querem, tornando-se mais "papista do que o Papa". Tem a Madeira uma arquitectura de regime autocrático ou isto é só desenhadores do sistema?


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Enviado por Denúncia Anónima
Quinta-feira, 24 de Dezembro de 2020 12:22
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