Observatório da Comunicação Social: dezanove.pt
21 de Junho de 2020
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T omei a liberdade de escrever estas linhas ao mesmo tempo que espreitava, na rede social Instagram, o discurso de coming out do cantor espanhol Pablo Alborán. Faço por mim? Sim, em jeito de expiação, digamos.
Dizem que as palavras têm o sentido que lhes quisermos dar e neste meu desabafo, em forma de crónica, cada um é livre de lhe atribuir o significado que quiser. Falemos então de palavras. Sem medos! Tal como elas são: Palavras. Cruas, tão genuínas quanto reais. Nunca pensei que a orientação sexual de alguém pudesse ganhar tantas alcunhas. À distância de mais de duas décadas, apercebo-me, agora, de que, ainda em criança, talvez foram esses os primeiros vocábulos a integrar o meu então modesto campo lexical.
- Maricas.
- Paneleiro.
- Gay.
Folheando as páginas da minha memória, surgem-me "flashes" de episódios da minha adolescência em que tinha a perfeita noção de que não queria ser diferente. Sei também que me recusava sê-lo. Esta minha vontade ganhava força de cada vez que era alvo de chacota, nos balneários da escola, após as aulas de educação física. Tirar a roupa à frente de outros rapazes era tão violento para mim, pois sabia que iriam surgir piadas como esta: “Deixei cair o sabonete ao chão, apanha!”
Não respondia. Nunca respondi. E o não ter coragem de responder deixava-me ainda mais triste e envergonhado
Para fintar os comentários cruéis, após o toque de saída da aula deixei de tomar banho e arranjava sempre uma desculpa para não frequentar os balneários.
Não respondia. Nunca respondi. E o não ter coragem de responder deixava-me ainda mais triste e envergonhado
Não respondia. Nunca respondi. E o não ter coragem de responder deixava-me ainda mais triste e envergonhado
Mas havia mais.
Aos olhos dos outros rapazes da escola, gostar de me dar com mulheres era meio caminho andado para ser atacado com outros tantos impropérios. Cheguei a fingir que não era comigo. Cheguei a apontar para outro rapaz, e rir-me por fora enquanto chorava por dentro. Tão triste. Confesso que foi na adolescência que aprendi a chorar para dentro (e ainda hoje o faço).
Chorei muitas vezes com o coração, e porquê?
“Porque um homem não chora”! - diziam. “Chorar não é de homem” - rematavam, e eu não queria ser diferente.
Sabem qual era o melhor momento do dia? O regresso a casa. Sobretudo nos finais de tarde de outono, quando chovia. Era ela quem me acalmava. O choro misturava-se com a água; era o único momento em que me dava ao luxo de chorar sem que ninguém reparasse.
Cheguei a soluçar em silêncio, confesso.
Gostava de sentir a chuva a escorrer pelo meu corpo, ao mesmo tempo que me limpava de qualquer sentimento de remorso ou vingança que pudesse conspurcar o meu pensamento.
Mais tarde, naquilo a que chamam adolescência média, revoltado e em negação, embarquei numa desventura e solitária travessia no deserto.
Pensei claramente que pôr um fim a tudo isto seria mesmo a única e melhor solução. Eram pensamentos que me perseguiam dia e noite
Pensei claramente que pôr um fim a tudo isto seria mesmo a única e melhor solução. Eram pensamentos que me perseguiam dia e noite. E não raras vezes cheguei àquele momento: “É agora, até um dia”. Senti mesmo que a minha vida chegou a estar por um triz.
Depois, não sei como, mas algo dizia-me para me concentrar no que me fazia feliz: comunicar. E foi isso que fiz. Tudo o que era mau só existia num mundo paralelo criado por mim. Só o que me fazia bem vivia no meu mundo.
Passei a ouvir e ler histórias de gente inspiradora. Como hoje!
Aprendi que além do ABC existia um outro alfabeto, às cores: LGBTIQQICAPF2K+ (desde 2018).
Aos 18 anos, saí da Madeira para estudar jornalismo; e assim foi! Corria o ano de 1998, quando cheguei à capital. No entanto, não me deixei envolver pelas novidades, nem pelo bom e mau de uma Lisboa que só conhecia pela televisão.
Para evitar amargos de boca decidi que o melhor seria fechar-me num armário e que sairia de lá apenas quando me sentisse realmente preparado.
Demorou, muito.
Embora alguns suspeitassem, tive de esconder de todos a minha orientação sexual.
E aos poucos apercebi-me: o preconceito estava em mim, não nos outros.
Só aos 26 anos deixei de ter vergonha de dizer o que sempre quis dizer: sou homossexual, e não há problema. Uma frase tão simples, mas ao mesmo tempo tão difícil.
Palavras e o peso que lhes atribuímos, não é o mesmo?
Palavras que, em tempos, tanto me magoaram me fizeram sofrer e aprender a chorar em silêncio; Palavras a que me agarrei quando pensei em desistir; palavras que hoje são a minha vocação e o meu ganha-pão.
E hoje, Pablo Alborán fez-me pensar: Quantxs Pablos existem por aí que também gostariam de dizer que ser homossexual não é problema.
Quanto tempo mais vamos permitir que a homofobia impeça outrxs de ter a mesma coragem de Alborán.
"Si alguna vez preguntas el porqué /
No sabré decirte la razón/
Yo no la sé/
Por eso y más/
Perdóname"
Obrigadx Alborán.
Filipe Alexandre Gonçalves, jornalista