Liberdade Individual vs Saúde Pública



O assunto da quarentena em vigor na Madeira, desde meados de Março, ainda antes de ter entrado em vigor o Estado de Emergência em Portugal, tornou-se já um símbolo do estado das coisas nesta região.

O que está em causa – e muita gente não compreende – não é a bondade da medida como forma de prevenção da disseminação da pandemia na região, mas muito mais do que isso.

O problema, é que há certas regras basilares num Estado de Direito Democrático que, se forem colocadas em causa, podem levar a curto ou longo prazo ao colapso total do sistema.

Um desses limites é, evidentemente, a Constituição da República Portuguesa.

Daí que ouvir um vice-presidente de um governo regional, ainda no início desta pandemia, tecer considerações de que a saúde dos madeirenses está acima da Constituição se traduza num espetáculo incómodo de antidemocracia e de falta de consciência dos mais elementares princípios da República e, pior, dos deveres funcionais inerentes ao cargo.

E se a afirmação até pode ter agradado a alguns (afinal, a defesa da Madeira acima da Constituição sempre foi uma forma popular de fazer política) o certo é que, se as vistas não forem curtas, qualquer cidadão tem o dever de compreender que quem tolerar uma actuação destas, não pode depois vir invocar a mesma Constituição para procurar a protecção da “República”.

Não parece haver grandes dúvidas de que a medida em causa, desde o seu início, estava ferida de ilegalidade e, pior, de inconstitucionalidade – o que, aliás, foi confirmado em Maio por um tribunal dos Açores, depois de vários constitucionalistas se terem pronunciado sobre a matéria, condenando, de forma unânime, a medida.

A propósito, tem sido muito utilizado o argumento de que a Madeira está há várias semanas sem novos casos para justificar esta medida. Mas no dia em que os fins (legítimos) justificarem meios inconstitucionais, é bom que se tenha presente que tudo será possível, tudo será defensável e tudo será justificável dependendo da lente de que toma a decisão. 

Pior, é possível afirmar, com o mínimo de honestidade intelectual, que a situação da Madeira seria diferente sem a quarentena? Afinal, quantas pessoas das que cumpriram a quarentena estavam efectivamente infectadas – se alguma? E essa ou essas pessoas iriam sequer disseminar a doença a mais alguém? Se sim, a quantas pessoas? E destas pessoas todas, qual a probabilidade, no meio de tantos “e se”, de que viesse a ocorrer algum óbito por causa daquela pessoa que não cumpriu a quarentena?

Vamos aos números. Atendendo ao número de infectados em Portugal ao dia de hoje (34885) ponderada a dimensão, e assumindo que a ratio de infectados por pessoa que aterrou na Madeira seja na mesma proporção do continente, temos que, para as 1200 pessoas que cumpriram quarentena, na mesma percentagem de infectados do país, existiriam 4 pessoas infectadas.

Em suma, enclausuraram-se de forma ilegal 1200 pessoas num quarto de hotel durante 14 dias, porque, possivelmente, 4 dessas 1200 pessoas estariam infectadas.

Ou seja, a utilização do argumento do conflito de diretos constitucionais é uma falácia, pois não pode afirmar-se que as pessoas que cumpriram quarentena eram, no geral, um perigo para a saúde pública, sendo certo que, eventualmente, uma pequeníssima parte daquelas pessoas poderia estar efectivamente infectada com o vírus e, dessas pessoas, nem sequer é possível saber se iriam sequer infectar outras pessoas caso cumprissem rigorosamente as medidas de segurança em vigor.
O medo sempre foi o maior inimigo das democracias.

No caso desta quarentena, o medo da doença permitiu separar as águas entre aqueles que acreditam na democracia e aqueles que, pelo menos quando o medo aperta, vêm na democracia (e no seu principal garante, a Constituição) um obstáculo indesejável e relativizável.

Outro argumento muito utilizado tem sido o da liberdade individual vs. Saúde pública dos madeirenses.

O diabo seduz com o medo.

Mas será legítimo falar neste confronto entre direitos, liberdades e garantias individuais que em concreto foram sacrificados e um direito económico, social e cultural, umbilicalmente ligado, na sua génese, ao sistema nacional de saúde, e que, em abstracto, poderia ser ameaçado por uma percentagem reduzidíssima dessas pessoas? Por vários motivos, é evidente que não, até porque a estrutura própria dos dois direitos não é sequer comparável.

Voltando aos Açores: enquanto naquele arquipélago, o Governo Regional, após a decisão judicial, terminou imediatamente a quarentena, oferecendo soluções alternativas e muito menos restritivas (ainda assim, constitucionalmente duvidosas), na Madeira, o Governo Regional informou imediatamente que a quarentena, mesmo sabendo-se ser inconstitucional, iria continuar.

O terceiro acto surgiu na semana passado, com os pedidos de habeas corpus que entraram em tribunal no Funchal e acabaram todos extintos por inutilidade superveniente.

De forma a evitar aquilo que seria visto como uma “derrota”, o governo regional decidiu, sem qualquer fundamento para tal, testar os requerentes de habeas corpus e cessar a sua quarentena antes que o tribunal se pronunciasse.

Entretanto, a quarentena já passou para sete dias. Na narrativa oficial consta que a medida nada teve que ver com as decisões judiciais, mas apenas com uma necessidade de controlar os custos desta quarentena – como se há três meses, esses custos fossem menores. 

O tribunal, por seu turno, tendo em mãos vários pedidos de habeas corpus, que é o processo com maior simbolismo histórico que o nosso ordenamento prevê e, provavelmente, o mais urgente de todos, protelou quase sempre para o dia seguinte as respectivas decisões sobre aqueles pedidos, sabendo pelo menos após a primeira situação que, ao fazê-lo, iria deixar de poder conhecer da manifesta inconstitucionalidade da medida e possibilitar assim que o requerente fosse libertado antes da decisão, levando à inutilidade dos vários pedidos apresentados.

Perdeu-se assim, nas vicissitudes jurídicas e processuais, uma oportunidade histórica para o poder judicial na Região Autónoma da Madeira poder dizer “presente”.

Quem perde, com isto, somos todos. E a quarentena ilegal continua, enquanto os que recorrem ao habeas corpus vão saindo pela porta do cavalo…

Tudo isto me lembra o muito partilhado poema do Pastor Martin Niemöller
(opositor do nazismo na Alemanha):

“Primeiro levaram os comunistas
mas não me importei com isso
eu não era comunista;
em seguida levaram os sociais-democratas
mas não me importei com isso
eu também não era social-democrata;
depois levaram os judeus
mas como eu não era judeu
não me importei com isso;
depois levaram os sindicalistas
mas não me importei com isso
porque eu não era sindicalista;
depois levaram os católicos
mas como não era católico
também não me importei;
agora estão me levando
mas já é tarde
não há ninguém para
se importar com isso. “

Enviado por Denúncia Anónima
Terça-feira, 9 de Junho de 2020 11:15
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